quinta-feira, 31 de outubro de 2013

A utilidade do Plano Diretor - JOÃO WHITAKER

Seria necessário priorizar a questão da segregação, prevendo nos corredores adensados estoques de terras públicas para fins sociais
Na proposta de Plano Diretor que se discute em São Paulo, focou-se o desequilíbrio entre os lugares de trabalho e de residência e a exagerada centralização econômica no eixo sudoeste. Concentrando ali a infraestrutura e as atividades econômicas, a cidade perpetrou um desequilíbrio estrutural, fazendo com que os que lá trabalham tenham que enfrentar demorados deslocamentos.
Quanto mais pobre a pessoa, mais longa e penosa a viagem. Como as políticas públicas sempre priorizaram o automóvel, que corresponde a apenas 30% das viagens diárias, a pendularidade dos deslocamentos associada à falta de uma rede de transporte de massa acabaram por colapsar a cidade.
Além disso, um planejamento urbano pouco efetivo e a ausência de regulação da atividade construtiva fizeram com que a cidade crescesse aleatoriamente, no ritmo das oportunidades imobiliárias. Chegou-se ao ponto em que o licenciamento de novos prédios foi simplesmente entregue à corrupção. Com isso, pululam shoppings centers inúteis, desfigura-se o pouco que resta dos bairros assobradados, destroem-se as áreas ambientalmente frágeis e inflama-se uma bolha de valorização.
A proposta do plano é concentrar os lançamentos construtivos apenas ao longo dos corredores expressos de ônibus, que devem multiplicar-se e passar a estruturar os deslocamentos na cidade. A oferta de prédios nesses eixos permitiria ter mais gente próxima ao transporte público, aumentando a mobilidade.
Se a lógica faz sentido, há obstáculos a superar. O principal é que o problema identificado não é o mais grave. O que realmente perverte a cidade é a própria lógica da urbanização, que no ato mesmo em que se produz, segrega os mais pobres para o mais longe possível, em um apartheid urbano. A implosão da cidade, pelo tensionamento econômico e social decorrente, já começou.
Adensar ao longo dos corredores permitindo um alto coeficiente construtivo, sem estoques limitadores, vai gerar forte verticalização nesses eixos, porém sem nenhuma garantia de que, com o aumento de prédios, seja dado lugar também aos mais pobres. Limitar o tamanho dos apartamentos, em um contexto de hipervalorização imobiliária, apenas aumentará o preço do metro quadrado. O que teremos será uma cidade um pouco mais racional e fluida, porém ainda uma cidade só para as classes média e alta.
O Plano Diretor proposto é tímido ao enfrentar a lógica do apartheid. Os instrumentos do Estatuto da Cidade continuam sendo empurrados para regulamentação posterior. Ele não rompe paradigmas, pois para isso seria necessário colocar a questão da segregação como prioridade absoluta, prevendo nos corredores adensados estoques de terras públicas para fins sociais.
Estamos no equilíbrio tênue entre romper o modelo da exclusão e construir cidades mais humanas ou deslizar de vez para a barbárie urbana, se é que já não o fizemos. Planos Diretores servem muito pouco, pois no Brasil podem ficar engavetados por anos sem maiores consequências, como ocorreu em São Paulo. Está nas mãos dos nossos vereadores a oportunidade de tornar o de São Paulo algo verdadeiramente útil, capaz de acabar com a cidade do apartheid, e mostrando ao Brasil o caminho para evitar a tragédia urbana que aflora.

Três poderes e uma cidade - PHILIP YANG

Empreendimentos "exclusivos", cercados por muros, tendência do mercado imobiliário, precisam dar lugar a projetos "inclusivos"
Em qualquer sociedade democrática moderna, o processo de urbanização resulta da interação de três poderes: o político, o econômico e o social. Uma intervenção urbana, quando realizada unilateralmente por apenas um dos poderes, terá menos condições de viabilidade, resiliência e legitimidade do que os projetos devidamente costurados pelos três.
É o equilíbrio dessas forças que determina o sucesso e a sustentabilidade do "fazer cidade". Não será diferente em São Paulo: o tripé de forças será vital para a transformação urbana de que precisamos.
O poder econômico, representado pelas grandes construtoras e incorporadoras e pelo mercado de capitais, dará contribuição fundamental se fomentar empreendimentos que promovam tecidos urbanos de uso misto com vastos espaços públicos, que combinem moradia digna, trabalho, comércio e serviços --espaços mais densos e menos dependentes do uso de carros.
Empreendimentos "exclusivos", cercados por muros, tendência do mercado imobiliário, precisam dar lugar a projetos "inclusivos", pois a geração de bens coletivos --parques, bulevares, calçadas-- exponenciará a geração do valor econômico de suas construções.
O poder social, fortemente empoderado pelas mídias sociais e movimentos de rua, será tanto mais legítimo e construtivo quanto mais for capaz de consolidar agendas positivas e transformar sua voz em vetor de aprofundamento da democracia.
Plataformas deverão ser constituídas de forma que as decisões sobre temas em diferentes escalas --de comunidades e bairros, passando por grupos de interesse, até o plano municipal e metropolitano-- possam contar com a participação popular.
O poder político, por meio do novo Plano Diretor Estratégico (PDE), tem hoje a prerrogativa de instituir um marco regulatório que poderá corrigir as grandes assimetrias que marcam a (des)organização espacial da cidade: a falta de moradia em zonas em que é grande a oferta de emprego, o subaproveitamento do solo nos entornos dos grandes eixos viários e infraestruturais, a escassez de espaços públicos de qualidade, a carência de zonas de uso misto e de renda mista, a baixa permeabilidade e arborização.
A minuta do PDE e o seu debate na Câmara Municipal poderão ensejar a grande convergência entre os três poderes de que São Paulo precisa. Há méritos e inconsistências na proposta, e o texto ainda requer ajustes. Esse processo poderá constituir um pacto em torno dos objetivos que nos levará à reinvenção da cidade, ou a uma "colcha de retalhos" produzida por interesses particularistas que agravará os problemas urbanos.
Entre as cidades globais, São Paulo é a que detém o maior estoque de terrenos ociosos ou subutilizados, situados em áreas centrais. Essa condição fundiário-urbana única representa uma chance histórica de promovermos um novo ordenamento espacial para a cidade.
O grande pacto de que necessitamos é o que permitirá que avanços concretos como o Casa Paulista, o Arco Tietê, o Parque Tecnológico do Jaguaré e outros projetos de grande escala sejam possíveis: um pacto entre forças sociais, econômicas e políticas e um alinhamento entre União, Estado e município que impulsionem a economia criativa, a atração dos melhores cérebros e a implantação aqui dos empreendimentos mais inovadores, para que a cidade se posicione estrategicamente na terceira revolução industrial em curso no mundo.
As cidades projetam no território aquilo que somos como sociedade. Resta-nos encontrar nossa melhor forma de expressão coletiva para a construção da cidade que queremos.

quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Ônibus rápido e carro congestionado é democracia: EX-PREFEITO DE BOGOTÁ ENRIQUE PEÑALOSA DEFENDE PISTAS EXCLUSIVAS PARA COLETIVOS E DIZ QUE ÚNICO JEITO PARA TRÂNSITO É RESTRINGIR AUTOMÓVEIS

Ex-prefeito de Bogotá, o economista Enrique Peñalosa, 59, entusiasma-se com o fato de os protestos de junho terem colocado a mobilidade urbana em pauta no Brasil, porque a questão simboliza "liberdade" e "equidade".
Responsável por implementar o amplo sistema de corredores de ônibus da capital colombiana há mais de uma década, faz defesa enfática da expansão das faixas de ônibus em São Paulo pelo prefeito Fernando Haddad (PT).
"Quando um ônibus passa ao lado de carros engarrafados, temos um símbolo de democracia. O interesse coletivo está acima do particular", afirma Peñalosa.
Leia trechos da entrevista concedida à Folha:
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O prefeito de São Paulo acelerou a implementação de faixas exclusivas para ônibus, mas há críticas à falta de ajuste das linhas e às interferências de carros. O que acha?
Enrique Peñalosa - Não posso entrar nos detalhes técnicos de São Paulo, pode haver erros na implementação técnica, mas admiro o prefeito por dar importância aos corredores de ônibus. O mais importante em uma discussão é a estratégia. Pode haver erros na tática, mas não na estratégia. A dificuldade para solucionar o problema do transporte não é técnica nem econômica.
Podem fazer mais duas ou três linhas de metrô, e não vai consertar o trânsito, pode-se fazer mais vias, e não vai consertar. Os ônibus com faixa exclusiva e os metrôs podem consertar o problema da mobilidade, mas não dão jeito no trânsito. A única maneira de dar um jeito no trânsito é com restrições ao uso dos carros. E a restrição mais óbvia de todos é a de estacionamento. Em São Paulo ainda há muitas ruas em que os carros podem estacionar.
Com metrô ou sem metrô, nunca será possível resolver o tema da mobilidade sem um bom sistema de ônibus.
A prefeitura deve revisar ou não a decisão de permitir que táxis com passageiros utilizem os corredores e faixas?
Não se deve permitir os táxis. Pode ser que em algumas situações isso não seja um problema, e teriam de ser estudados os detalhes técnicos, mas, a princípio, nada que provoque a mais mínima demora aos ônibus deve ser permitido. Um táxi leva uma pessoa e um ônibus pode levar até cem passageiros: o segundo tem direito a cem vezes mais espaço.
Além do mais, em sociedades tão desiguais como as nossas, se damos privilégios aos táxis terminaremos com um sistema onde os ricos têm um táxi com contrato permanente, ou quase permanente.
O sr. é defensor da expansão do uso da bicicleta. Por que é mais que uma causa de classe média ou de fim de semana?
O transporte é diferente de todos os demais desafios que temos na nossa sociedade. Diferentemente da saúde ou da educação, tende a piorar à medida que nos tornamos mais ricos. Se amanhã São Paulo exibir o dobro da renda per capita atual, haverá melhora nesses itens, mas o transporte vai ser pior, a não ser que mudemos de modelo.
Quando falamos de bicicletas, não estamos falando que vão substituir os ônibus, os trens nem nada disso. Mas as bicicletas podem chegar a ter uma porcentagem importante das viagens. Hoje em São Paulo menos de 1% da viagens são feitas em bicicleta. Se chegarem a ser 10%, seria uma revolução. As ciclovias protegidas não são um detalhe arquitetônico simpático, mas um direito.
De novo, estamos falando de democracia. Quando um ônibus passa ao lado de carros engarrafados, temos um símbolo de democracia. O interesse coletivo está acima do particular.
[Bicicleta] não é uma pauta [de classe média]. Em Bogotá, os que mais usam são os mais pobres, que economizam: uma pessoa que ganha salário mínimo e consegue usar bicicleta economiza entre 15% e 20% de sua renda.
O aumento da passagem em São Paulo foi o estopim das manifestações de massa de junho, e uma proposta central foi a gratuidade do transporte. O sr. acha viável?
É interessante que os protestos surjam ao redor da mobilidade porque a mobilidade é uma nova expressão de liberdade. Tem a ver com equidade. Mais importante do que a luta pela gratuidade, agora, é lutar por uma distribuição mais democrática do espaço viário, que dê mais e melhor espaço aos pedestres, mais corredores de ônibus, ciclovias protegidas. É a luta mais importante agora.
É importante subsidiar o transporte público, na melhor das hipóteses com recursos cobrados do uso do carro, porque quem mora mais longe do trabalho em geral é mais pobre. Mas transformar o transporte em totalmente grátis é muito difícil. Não conheço nenhuma parte do mundo em que isso tenha sido feito em larga escala.

Fonte: Folha, FLÁVIA MARREIRO, DE SÃO PAULO.