terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

Só atravesse no verde: A lógica perversa das cidades

FLÁVIO MOURA
O pedestre é moralmente superior ao motorista. Atravessar fora da faixa não é crime comparável a fazer uma conversão proibida
A retomada dos blocos não é apenas sinal de vitalidade do Carnaval em São Paulo. Ela representa uma reconquista da rua como espaço por excelência do pedestre e serve de emblema para a luta contra o uso do carro na cidade.
Além das pessoas atropeladas na Vila Madalena, em São Paulo, no último fim de semana, entre suas vítimas recentes estão o urbanista Jorge Wilheim, ironicamente um grande crítico da cultura do automóvel, o professor de espanhol Matias Gurbanov, atropelado em sua moto no Morumbi, o executivo Antonio Bertolucci, atropelado na Sumaré, o arquiteto Joaquim Guedes, morto ao atravessar a Nove de Julho, o publicitário Rubens César Ribeiro, morto na mesma avenida.
Esses casos falam mais que as estatísticas absurdas sobre o trânsito em São Paulo. São tão trágicos quanto corriqueiros e mostram que o problema vai além das clivagens sociais.
O economista André Lara Resende publicou um artigo no "Valor Econômico" em que defende que o Itaim seja fechado à circulação de carros. Que um economista com seu perfil defenda essa ideia, e ainda para um bairro frequentado por fração expressiva do patronato paulistano, é algo que pede atenção. Não se trata de uma causa que opõe intervencionistas a liberais, progressistas a reacionários, governistas a oposição. Repensar o uso do carro nas grandes cidades é uma urgência que ultrapassa os alinhamentos automáticos do debate político atual, aliás amesquinhado como há muito não se via.
Por mais que certo colunismo tente enxergar ranço stalinista no "coletivismo" de quem defende as faixas para ônibus, não há dúvida de que São Paulo começa a se mexer. A voz mais audível dos ciclistas, a recorrência do tema no debate público, a proposta de demolição do minhocão e de criação do parque Augusta, ideias como a de Lara Resende, tudo isso torna o momento particularmente oportuno.
Resende afirma que teve aquela ideia ao atravessar a ponte Cidade Jardim a pé. Fazia isso pela primeira vez, após 25 anos morando na cidade. O fato prosaico dá a dimensão de como a cidade é hostil ao pedestre.
Toda semana, atravesso a pé a Juscelino Kubitschek na altura da Bandeira Paulista. O farol de pedestre, que só abre caso se aperte o botão, fica verde durante três segundos. Mesmo partindo assim que ele abre, é preciso correr para chegar até o meio da avenida. Fica-se então numa nesga de calçada com túnel por baixo e carros zunindo à frente. Só depois de longa espera pode-se atravessar a outra pista da avenida, também em três segundos.
Na esquina da Antônia de Queiroz com a Consolação, dá pena ver senhoras de idade correndo para alcançar o meio da pista antes de o homenzinho luminoso parar de piscar.
Isso sem falar na condescendência irritante dos motoristas que "deixam" o pedestre passar com aquele aceno displicente das mãos. Recentemente, numa faixa de pedestres sem farol perto da Santo Amaro, atravessei sem agradecer ao sujeito que parara. "De nada, otário", ele gritou assim que cheguei à calçada. Otário é você, meu caro.
Todos têm sua cota de culpa. O playboy que tira racha bêbado é um criminoso. Mas não estão muito melhor a universitária que fala ao celular dirigindo seu carro sustentável, o pai de família que anda a 70 por hora em qualquer avenida e acelera em ruas pequenas, o motorista de ônibus que desce a Angélica a toda velocidade, o taxista que reclama de todos, mas anda em zigue-zague para pescar passageiros.
Acidentes com automóveis mataram 150 mil pessoas entre 1990 e 2010, no Estado de São Paulo. As taxas de mortalidade no trânsito no Brasil são mais altas que na Índia, China e mais que o dobro dos Estados Unidos. Mas abrir mão do carro é visto como atitude radical mesmo pela maioria de seus detratores.
O pedestre é moralmente superior ao motorista. Ele não está armado, não põe a vida de ninguém em risco. Atravessar fora da faixa não é crime comparável a fazer uma conversão proibida ou ao excesso de velocidade. O momento é bom para estigmatizar o carro na cidade. Os ciclistas vieram para ficar, as faixas de ônibus são uma realidade. Falta agora essa categoria difusa --o pedestre-- tomar consciência de que a cidade é feita para ele e se fazer ouvir.