quinta-feira, 13 de março de 2014

Morte em moto: Um Boeing a cada seis dias

ROGÉRIO GENTILE
SÃO PAULO - O crescimento do uso de motocicletas é tão alucinante que, mantido o ritmo atual, é possível dizer que na próxima década a frota em duas rodas ultrapassará a de carros. A consequência disso é facilmente verificável em funerárias e cemitérios do país, a despeito da pouca importância que se dá ao assunto nos gabinetes oficiais.
Pelo menos 40 motoqueiros morrem diariamente nas ruas do Brasil, segundo os últimos dados conhecidos, de 2011. Em 1998, eram cinco por dia. Na prática, é como se atualmente a cada seis dias um Boeing-777 desaparecesse no oceano sem deixar vestígios. O número é maior que o de óbitos por atropelamento (32/dia) ou em acidentes de carro (34/dia), diferença que aumenta a cada ano.
O "motocídio" cresce mais rapidamente até do que a própria violência urbana. Se, em 1996, um motociclista morria a cada 27 pessoas assassinadas no Brasil, em 2011 houve um óbito em acidente de moto para cada 3,5 homicídios.
Os dados são ainda mais preocupantes se comparados com os internacionais. Segundo o "Mapa da Violência 2013", estudo muito bem-feito pelo Centro Brasileiro de Estudos Latino-Americanos, o Brasil tem a 13ª pior taxa de mortalidade numa lista de 122 países pesquisados. Foram 7,1 mortos em 2010 para cada 100 mil habitantes. Pior, por exemplo, que Índia (6,1), Uganda (5,0), Costa do Marfim (3,4), Venezuela (1,5), Argentina (1,3) e México (0,6).
Apesar do índice elevado de óbitos --e dos gastos astronômicos com hospitais e custos previdenciários--, o governo continua a estimular o uso de motocicletas, facilitando, por exemplo, o financiamento nos bancos oficiais. Chega a ser mais barato pagar uma prestação no final do mês do que utilizar transporte público. Mais grave ainda é autorização para que motoqueiros circulem entre duas filas de carros, em espaços apertadíssimos. Ao contrário do que se pensa, no Brasil existe, sim, "corredor da morte".
Folha, 13.03.2014.

quarta-feira, 12 de março de 2014

Mobilidade perversa: Uso de meios individuais de transporte avança mais que o de públicos na Grande São Paulo, que paga o preço de suas escolhas equivocadas

Pesquisa divulgada pela Secretaria dos Transportes Metropolitanos de São Paulo mostrou, em números atualizados até 2012, uma situação que os moradores da região percebem no seu cotidiano: o transporte coletivo permanece aquém das demandas da população, que busca opções individuais para compensar as deficiências.
De acordo com o levantamento, verificou-se de 2007 a 2012 um acréscimo de 21% no total de deslocamentos feitos com carros, motos e táxis. No mesmo período, as viagens realizadas em ônibus, trens e metrô aumentaram 16%.
O descompasso evidencia o menor apelo do sistema público de transporte, mas também reflete o crescimento da capacidade de consumo de setores de baixa renda e as vantagens tributárias concedidas à indústria automotiva.
É importante registrar que, embora válidas, as comparações podem trazer pequenas discrepâncias. O atual estudo foi feito no intervalo entre as pesquisas "Origem e Destino", mais abrangentes e com periodicidade decenal.
Questões metodológicas, contudo, em nada interferem nas tendências evidenciadas pelo levantamento. Uma delas é a crônica dependência da população em relação aos ônibus e carros. Os dois meios respondem respectivamente por 12,5 milhões e 12,6 milhões de viagens e representam 57,4% de todos os deslocamentos da região metropolitana de São Paulo.
Tal preponderância realça outro problema: a lentidão de sucessivas administrações tucanas ao ampliar a oferta de transporte sobre trilhos. Embora tenham aumentado de forma expressiva nos últimos cinco anos, as viagens de metrô e trens --menos poluentes-- equivalem a somente 12,4% do total.
A explicação para isso é simples. São Paulo possui escassos 74 km de linhas subterrâneas. Mesmo considerando ampliações previstas até o final década, que poderão acrescentar 78 km de trilhos, a rede continuará pífia se comparada às de Londres e Xangai, cujas malhas têm mais de 400 km.
Não é recente, em todo caso, a imprecaução dos governantes. Em 1967, data da primeira pesquisa "Origem e Destino", o transporte público provia 68% das viagens, e o individual, 32%. Em 2002, pela primeira vez, as modalidades coletivas responderam por fatia minoritária (47%) dos deslocamentos.
Nas pesquisas seguintes, de 2007 e 2012, o quadro se inverteu de novo. Em ambas as ocasiões, os meios coletivos foram majoritários (54%). Se a tendência atual for mantida, porém, o transporte individual voltará a ser dominante.
Hoje, felizmente, é preponderante, se não consensual, a ideia de que é preciso investir em metrô/trens e corredores de ônibus em detrimento do automóvel.
Trata-se de uma necessária --e sem dúvida custosa-- correção de rumos, que não se fará de uma hora para a outra. São Paulo perdeu muito tempo. Paga, agora, o preço de suas opções equivocadas.
Folha, 12.03.2014

segunda-feira, 10 de março de 2014

Quem tem lugar nas cidades?

RAQUEL ROLNIK
Quem tem lugar nas cidades?
Sem alternativas, pessoas são removidas de suas casas em função de processos de renovação urbana
Na tarde de hoje, apresento ao Conselho de Direitos Humanos da ONU, em Genebra, meu último relatório temático como relatora para o Direito à Moradia Adequada.
Ao longo destes seis anos de mandato, pude constatar a grave crise habitacional que atinge as populações mais pobres das cidades em todo o mundo. A questão da segurança da posse --tema deste meu último relatório-- está no centro desta crise.
Na África do Sul, no Brasil ou em Nova Déli, foram as populações mais pobres que perderam suas casas para dar lugar a grandes projetos relacionados a megaeventos esportivos. Também em países como a Irlanda, a Espanha, o Cazaquistão e os EUA, quem perdeu suas casas com a crise financeira e hipotecária, ficando no meio da rua, foram os mais pobres e vulneráveis.
Todos os dias, em todo o mundo, pessoas são removidas de suas casas em função de processos de renovação urbana, implantação de infraestrutura e mesmo de reconstrução pós-desastres naturais, sem que alternativas de moradia digna sejam oferecidas.
Isso ocorre porque os responsáveis pela implantação destes projetos consideram apenas os direitos dos atingidos que são detentores de títulos de propriedade registrados, sem levar em conta a moradia como um direito humano.
No Brasil, quem tem título de propriedade consegue ser indenizado. Mas quem está vinculado ao território onde vive por outras formas --pelo direito consuetudinário, por tradição religiosa, por aluguel, por ocupação-- recebe, na melhor das hipóteses, indenização pela benfeitoria (a casa) --jamais pelo valor da terra--, ou um aluguel social de R$ 400 ou menos por alguns meses.
Isso significa mais pessoas sem teto, mais produção de moradias precárias, mais exposição a vulnerabilidades, mais violações de direitos. Ao contrário do que previam as metas do milênio, a quantidade de assentamentos informais no mundo não vem caindo, só aumentando.
Isso porque, nas últimas décadas, tem prevalecido uma interpretação muito restrita da moradia como mercadoria e, mais recentemente, como ativo financeiro. O resultado é que a política habitacional predominante no mundo, inclusive no Brasil, é a promoção do crédito para aquisição da casa própria.
Tal política pode ser adequada para determinados perfis populacionais, mas não atende as necessidades dos mais pobres e vulneráveis. Além disso, em vários países, alternativas como políticas de aluguel social, habitação pública, cooperativas, entre outras, vêm sendo desconstituídas.
Em muitos casos, como no Chile e no México, famílias de baixa renda só conseguiram adquirir moradias muito distantes da cidade. Isso gerou enormes guetos, sem heterogeneidade, muitas vezes tomados pelo tráfico de drogas. Nessa situação, é comum que as moradias sejam vendidas ou abandonadas. O Brasil, certamente, caminha na mesma direção.
Uma política que parta do princípio de que a moradia é um direito humano não pode se basear em um modelo único de posse. Deve, ao contrário, proteger e promover a posse na sua variedade de formas.
Sem isso, é impossível assegurar a todos um lugar na cidade, garantindo, progressivamente, o direito humano à moradia, como determinam os tratados internacionais.
Folha, 10.03.2014
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